pedro alex

27/08/08

História, estória... I, II, III, IV

Vinha afoito escrever aqui, faz quase um mês que aqui não escrevo, vinha afoito e destemido, determinado pela vontade de reestrear, redescobrir, reinventar, tão ligeiro e apressado vinha eu que me esqueci do que vinha aqui rabiscar.

Se me amansar à motivação escreverei coisas tão belas, deliciosas, quase poções mágicas, e maravilharei quem estiver com ousadia de as interpretar:

I



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Esta é a história da valentia de um barquinho decidido a escapar das amarras do mar para navegar em campos, montes e serras de flores.


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Cansado da monotonia de mares e mais mares despediu-se dos seus pares resolvido a contrariar a lógica e a evidência.

Só encalha quem quer, foi o seu primeiro pensamento desmesurado quando sentiu o mar faltar-lhe e a terra áspera, ainda depósito de conchas, cascas de mexilhão, restos de redes, latas enferrujadas lançadas à água por gente incauta, coçar-lhe o casco incutindo-lhe precaução.

Cauto, tão cauto tenho sido, lembrou-se à medida que o desequilíbrio pela falta da sustentação que a água tanto lhe dera, lhe acanhava os movimentos quase sempre rectos de proa para as ondas.

Sentiu-se preso, sentiu-se subitamente sufocado e inclinou-se submisso…

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II

Impressão que depressa foi vencida pela pretensão apadrinhada por uma vontade ancorada na descoberta de novos horizontes diferentes da planura do mar ou raso ou ondulado ou encapelado.
O deleite que tanta vez obriga à renúncia estava à mão de semear, e o mais difícil, encalhar por vontade própria, já o tinha conseguido. À memória viera-lhe histórias de outros companheiros que por infortúnio afundaram em abismos, lançados por tormentas contra escolhos aterrorizadores rasgaram o casco em mil bocados contra a querença de todos eles.
Sacudiu a imaginação e refez a memória unicamente concentrada nas histórias dos homens que o serviam e transportava com destreza a bancos de pesca e outros portos onde negociavam a generosidade do mar, e trocavam histórias contadas e recontadas vezes sem conta nas pausas das suas vidas azafamadas.
A obsessão em vislumbrar novos mundos tantas vezes escutados lembrou-lhe um dito proferido pelos seus homens “a fé move montanhas”, interiorizou-o e num gemido estrondoso endireitou-se, abanou-se sacudindo os restos de água e sal, e ergueu-se majestoso caminhando pela areia; era esquisito, seria acessível.
Caminhou intrépido os primeiros metros tentando absorver ao pormenor todas as impressões novas. Quando olhou em frente testando a visão do novo mundo assustou-se e gritou quando viu a carcaça de um dos seus exposta sem recato.
- Quem és tu? O que te aconteceu? O que te fizeram?
Exclamou mostrando toda a sua inquietação.

III

- Eu? Diz-me antes quem és tu. Nunca vi desvairado como tu a lançar-se do mar para a terra, encalhar e erguer-se como se nada tivesse acontecido, com os modos de um deus qualquer capaz de contrariar as leis que a Física impôs desde o início dos tempos.

- Gajeiro, nunca ouviste falar do Gajeiro? O Gajeiro sou eu.

- Gajeiro? Não. Também sou velho e desde que me tornei obsoleto tiraram-me do mar. Resta-me agora esta velha carcaça torrada pelo Sol, a paisagem compassada pelas enchentes e vazantes, os excrementos da passarada e os lixos humanos. Era o que mais me faltava conhecer o Gajeiro que por arte ou teimosia zarpa do mar para terra.

Sabes tu quem é o Infante?

- O Infante? Nunca ouvi falar, a não ser daquele que lançou as nossas ilustres antepassadas ao mar para descobrir mundos.

- És novo, pouco sabes então das lides do mar se não me conheces, o Infante.

- Diz-me então Infante os motivos porque haveria eu de te conhecer!

- Hão-os tantos. Deitaram-me ao mar nos primeiros quartos do século vinte. Venci a minha primeira rebentação instigado por dois remos de mais de cem quilos, cada um governado por dois braços vigorosos de dois dos três humanos que acolhia a bordo. Ia carregado de redes acabadas de tecer ornadas com bóias coloridas e pequenos mastros onde dançavam duas ou três bandeirinhas de flanela velha que davam identidade às redes. Vinha do mar ainda mais carregado, com tanto peixe que ainda hoje lhe sinto o cheiro embrenhado no pinho da minha carcaça. À chegada da faina esperavam-me um rebuliço de gente cantante, feliz pela dádiva que trazia, e parelhas de bois bem pomposos que me arrastavam areia dentro para descansar da jornada. Não faço conta às histórias porque passei ilustre Gajeiro, nem às 2 gerações de homens que por mim passaram e que com orgulho sempre levei e trouxe a salvo. Ainda hoje, os que ainda por cá andam, encostam-se a mim saudosos e carpem mágoas da contemporaneidade, ou relembram façanhas já há muito idas. É um regalo quando os tenho. Vê lá, já velho e caduco e ainda lhes dou encosto.

- Talvez te devesse conhecer Infante. Desconheço muita coisa do nosso mundo, e dele, agora, nada mais me interessa. Ergui-me para a terra não foi para conhecer histórias do mar, quero ver o outro mundo, aprendê-lo, e depois, talvez volte ao nosso.

Sabes tu coisas do outro mundo?

- Não. Não nem quero saber. As vezes que já me choraram lágrimas em causa desse mundo foram as suficientes para que dele só queira o chão que agora me sustenta. A monotonia desta minha vida sem uso, pendulada pelas marés, dias e noites, estações e tempos, é-me cara. Estou velho e resignado, a novidade estremece-me. Doutros mundos não quero saber nada e não tenho raiva dos que deles sabem muita coisa.

- Seja feita a tua vontade Infante. Eu vou satisfazer a minha e quem sabe um dia volte a passar por aqui e te conte novas de todos os mundos. Até um dia destes Infante.

- Vai com sorte Gajeiro.

IV

A sorte tantas vezes em vagas alterosas posta à prova não lhe iria faltar, não por ser audacioso, cansado estava das prelecções do dito mestre que tantas vezes levava a bordo sobre a pretensa fama de ser sortudo. Ele sim fazia-lhe a sorte quando todas as suas juntas rangiam durante a tormenta, ou quando por teimosia do leme desviava uns segundos a rota pretendida levando a sua tripulação a um banco de peixe bíblico. “Construo a minha sorte em cada decisão que opto contra as que me são adversas” resmungou enquanto deixava a ré para o Infante. “Obrigado Infante” vociferou através da corneta que tanto concerto deu nas campanhas ensombradas pelo nevoeiro.

O novo mundo, exagerado em toda a sua estranheza, precisava urgentemente de ser compreendido na sua forma para que depois se aventurasse no entendimento do seu feitio. Teria de ouvir, cansar-se de ouvir sem perguntar, estontear-se de compreensão, tarefas absurdas mas indispensáveis na escalada almejada.

Teria avançado uns 30 metros, 30 longuíssimos metros, talvez a sua maior distância percorrida julgando pelo cansaço que sentia. Um descanso seria a aconselhável decisão, descanso e contemplação dum novo horizonte que lhe parecia menor do que o que estava habituado. Descanso, contemplação e descoberta, suspirou enquanto a brisa trazia a maresia que o irritava e que de cor já sabia quando tinha mais ou menos sal, mais ou menos humidade, mais ou menos algas, era douto no conhecimento de todos e mais alguns elementos que compunham o seu odor. Não fosse a maresia e o local seria perfeito para o pretendido descanso. Por enquanto recusou o ideal e adornando um pouco de estibordo deixou-se relaxar parando de vez.

Estar, verborreia tão ouvida, queria agora só estar.

10 comentários:

Anónimo disse...

ola pedro.
ha quase um mes que nao escrevias...tu e muita gente. em setembro volta tudo ao mais do mesmo.para depois em agosto proximo... enquanto assim for estamos vivos. de que modo nao interessa.
sinto o texto como uma comparação. mas se calhae é amania de procurar linhas nas entrelinhas.
beijinhos da leonoreta

Maria Moura disse...

Conta-me histórias, Pedrocas, e encanta-me com coisas belas e deliciosas do valente barquinho decidido que um dia se fez à terra...Que não te falte a inspiração!

pedro alex disse...

Ois Leo:D
Sabes de que modo eu gosto de estar vivo?
Estando vivíssimo!
Não me procures entrelinhas, eu, pescador, só uso a que está no carreto, luta e traz-me o peixe, depois de o pescar, tadinho, devolvo-o à vida.

DoubleM, em voz alta e a sorrir com altivez te digo que a inspiração não me falta nem faltará; a estória:D que se ponha fina e que te encante; o barquinho que te delicie! Chamar-lhe-ei Gajeiro:D

Storm disse...

Olá Pedro
E eu já mais de um mes que cá não vinha e como sempre saio daqui com a alma cheia.
Beijo

Anónimo disse...

nao "te" procuro nas entrelinhas?

claro que nao Pedro.
nao confundo autor com narrador.

mas que as entrelinhas existem, existem. é uma especie de jogo as escondidas nos textos.
beijinhos

Anónimo disse...

Olá Pedro, regressas de férias em grande forma pelo que vejo, não há duvida que as férias são coisa importante, os ciclos fazem maravilhas.
É catita a tua traineira, Gajeiro presumo, inconformada, corajosa e ainda por cima com as cores do gloriosos SLB :). Quantas histórias fascinantes, verdadeiras aventuras e desventuras, não terá ela ainda para nos contar pois não me parece que caia em estórias :)
A primeira imagem com a montagem de flores, é belíssima, um post só por si.

Maria Moura disse...

Por acaso já escrevias alguma coisinha, não? Ou o barco encalhou de vez, hein?

pedro alex disse...

Ai meus caros, por mim era grego e fazia do ócio o meu ofício.
Que vos diga?

Acho engraçado desta vez não vos responder aos comentários, as histórias são assim, contam-se até ao fim, sem comentários, e finalmente sem músicas.
Se alguma alma questionar-me com oportunidade responderei a modos, senão, no fim, bebemos um cházinho e comemos uns bolinhos;)

Anónimo disse...

Devorado o III acto, fumei o dispensável cigarro que justifica o intervalo, com uma incompreensível urgência em estar pronto muito antes das pancadinhas de Molière que, com solenidade, marcarão o início da parte IV.
- Será que vejo bem daqui?
Questiono-me olhando com evidente cobiça para a poltrona da Maria Moura lá bem na frente na primeira fila.
- Fado-se Voyeur! Lá estás tu a querer armar confusão. Fica tranquilo e nem penses em trocas e baldrocas pois eu não trocava isto nem pelo Michael Bublé ao vivo.
Sim, era a voz danada da Moura já que adivinhara o meu pensamento. Pois que não te demores mais do que a primeira pancada, senão quem senta o cu naquele sofá sou eu. Era este o verdadeiro significado do sorriso que de pronto lhe dirigi.
São assim algumas das histórias do outro mundo.

Anónimo disse...

Parada, relaxada...também só quero estar, a ouvir as tuas histórias. Demora muito ou é coisa para ganhar calo?